Cartas e recordações

Simples como sonha uma criança

COMPARTILHE

Um dia desses estava em casa, o telefone toca, era minha mãe, que com voz apressada e nervosa falava sem parar: “Filho, venha logo, seu pai não esta muito bem e chama por você.”

Sai correndo, do jeito que estava, o caminho era curto, mas parecia longo demais. Em um segundo passou por minha mente o filme da minha vida. Me lembrei de nossas caçadas que ao invés de ajudar, eu atrapalhava. De nossas pescaria que eu não ficava quieto, das viagens simples mas inesquecíveis, do almoço a sombra de frondosas arvores a beira da estrada, dos gols que gritamos juntos e do violão que tão bem você dedilhava.

Tudo que eu queria era chegar logo, chegar a tempo de te abraçar, e dizer coisas simples, mas que não digo a muito tempo, coisas do tipo: “Eu te amo, meu pai”.

Chego em sua casa, entro correndo, te vejo em uma cama, você sorri, seus olhos brilham. Repouso sua cabeça em meu colo e digo: “Pai tenha força, não vá ainda, temos muito que fazer, que conversar, vou parar com a correria, vou vir mais te visitar, vou ter mais tempo para ouvir, mais calma para te acompanhar”.

Num grande esforço você me abraça, encosta o rosto no meu e com voz meio baixa me diz: “Filho, meus sonhos sempre foram pequenos, joguei fubecas, andei descalço, vendi sorvete em carrinho de mão, nadei em rio, engraxei sapatos na estação, namorei e casei com a mulher amada, hoje sua mãe. Aprendi algumas coisas na vida e uma quero te deixar como lição: Nos arrependemos de muita coisa que fizemos, mas principalmente do que deixamos de fazer: de uma última palavra, um pedido de perdão, de amar e falar do amor, de correr menos, de ter tempo, pois os filhos crescem rápido demais, quase não percebemos.

Ah! Se eu pudesse, voltaria no tempo, te veria crescer mais devagar, rolaria com você pela grama, subiria naquela alta montanha para ver o pôr-do-sol, brincaria na chuva, parava para ouvir o canto do rouxinol. Sabe filho, teria guardado todos desenhos que você me fez, não faltaria a uma reunião na sua escola, e conheceria todas suas professoras, iria com você a pé toda tardinha à padaria do seu José, te levaria num parquinho, daqueles bem antigos, empurraria o carrossel até ficar bem rápido, e ai subiria  junto, ficaria ao seu lado, o carrossel girando e o mundo todo parado.

Ah Filho, jogaria mais bola, riria mais, ficaria menos bravo, contaria mais histórias, te levaria mais a igreja, e quando cansado queria te ver adormecer em meus braços. Mas uma coisa, talvez a principal, esta não ia deixar passar: iria toda noite ao seu quarto te cobrir, te beijar, falaria bem baixinho no teu ouvido que eu sempre iria te amar, ajoelharia ao lado da cama, agradeceria a Deus pelo dia e o filho que Ele me deu.

Ai está a felicidade! Muita coisa não fiz, faça isto com seus filhos, só assim eles terão lembranças do tempo de criança, tempo que não volta mais.

Quanto a mim, vou ficar bom logo, sair desta cama, quero passear com você, com meus netos, ir até um jardim contar historias do tempo que eu era criança: joguei fubecas, andei descalço, vendi sorvete em carrinho de mão, nadei em rio, brinquei na chuva, engraxei sapatos na estação. São historias simples, simples como é a vida, simples como sonha uma criança”.

Airton – 11/08/02

COMPARTILHE
Envie-nos uma mensagem